domingo, 4 de maio de 2008

A poesia de Cesário

Le bar des Folies bergères, de Manet“(…) A sua poesia é a dum artista plástico, enamorado do concreto, que deambula pela cidade ou pelo campo e descreve de modo vivo, exacto, as suas experiências. Esta «objectividade» antilírica da sua obra poética não impede todavia a expressão, embora discreta, de ideias e sentimentos que definem o homem situado: o amor da actividade útil, saudável; o respeito pela ciência positiva do seu tempo; a confiança no progresso; a solidariedade com os humildes, vítimas das injustiças sociais. Nos versos do Conde de Monsarás, seu amigo, aplaude «o protesto franco e salutar em favor do povo». E, quando exalta o trabalhador, símbolo da energia indomável do povo, os seus versos ganham, excepcionalmente, um movimento oratório:


«Povo! No pano cru rasgado das camisas.
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas:
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!»
(in «Cristalizações»).


O contraste entre o egoísmo dos ricos e a miséria dos pobres é o tema que fica em suspenso no último poema de Cesário Verde, deixado incompleto («Provincianas»).
Muitas vezes, aliás, o poeta refere a si próprio, espectador, imagens e sensações, e a «objectividade» plástica alterna, em vários passos, com a fuga imaginativa. Se é «realista» o vocabulário do poeta, cheio de termos concretos, alguns deles técnicos ou da linguagem familiar («biscate», «salmejo», «valador», «amoniacal», «batatal», etc.); se é analítica a sua frase, feita de notações justapostas, com séries de adjectivos que procuram cingir os contornos e o poder sugestivo das coisas («Sobre os teus pés decentes, verdadeiros, / As saias curtas, frescas, engomadas»); se, mais ainda, num esforço renovador, paralelo ao que Eça de Queirós leva a bom termo na prosa, Cesário tira partido de processos vincadamente impressionistas, fazendo avultar a sensação inicial, só depois referida ao objecto («Amareladamente, os cães parecem lobos») ou combinando sensações e misturando o físico e o moral («Ombros em pé, medrosa e fina, de luneta! »); noutros casos assistimos, na poesia de Cesário Verde, ao jogo do «real» e do «irreal»: os estímulos da circunstância fazem evocar o ausente (os calafates lembram ao poeta «crónicas navais», «soberbas naus» que ele nunca verá; as varinas «embalam nas canastras / os filhos que depois naufragam nas tormentas») ou vem a imaginação transfigurar as coisas vistas, transformar, de noite, as lojas iluminadas em «filas de capelas» duma enorme catedral, etc. Por breves momentos, é certo, porque logo o poeta tem de regressar à esfera sensorial, à «realidade» comum. E Cesário, artista muito lúcido, com invulgar consciência crítica (nisto reside, em parte, a modernidade que o torna um admirável precursor), não deixa de comandar, de organizar estas alternativas. (…)”


“Os ensaístas que, com mais penetração, se têm ocupado de Cesário (David Mourão-Ferreira, Joel Serrão) interessaram-se, de preferência, pelo binómio campo-cidade na obra do negociante-poeta. Sob o signo de Baudelaire, Cesário Verde deixa-se algum tempo conquistar pelas seduções da urbe; traça «quadros revoltados», medita «um livro que exacerbe», queixa-se de tédio, diz amar «insensatamente os ácidos, os gumes / E os ângulos agudos». Tem a nostalgia dos grandes centros: «Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! » Torna-se o poeta por excelência de Lisboa, cuja figura multifacetada descobrimos, inteira, em poemas como «Num Bairro Moderno» e «O Sentimento dum Ocidental» - desde a paisagem física (a Baixa pombalina, as ruelas junto ao rio, os bairros novos, de ruas amplas, macadamizadas) à paisagem humana (padres, militares, altos funcionários, burguesas e «imorais», padeiros, vendedeiras de hortaliça, varinas, operários, calceteiros, arlequins e mendigos), sem esquecer as metamorfoses do ciclo das horas (a Lisboa nocturna, com a sociedade elegante, misérias e grotescos à luz débil do gás, e a cidade soalhenta, garrida, laboriosa) e a situação geográfica (os cais, os emigrantes, a ânsia do mar desconhecido, as tradições dos Descobrimentos). Mas já quando percorre a cidade o poeta deixa entrever o desejo de espaços mais amplos, dum ar mais puro, duma vida mais sã. (...)”


Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura, 3ª edição, Porto, Figueirinhas Ed., 1985 (Volume 4)


O almoço dos remadores, de Renoir

“(...) Cesário Verde é o único poeta do grupo tido como realista que consegue superar, de facto, a herança romântica. Em poemas como De Tarde, Nós, Contrariedades, Cristalizações, O Sentimento de um Ocidental, não se nos deparam os vagos operários e prostitutas do progressismo verboso de certos contemporâneos, nem o oco pessoalismo ultra-romântico. Ele é o poeta cuja neurastenia se retrata e ironiza num quarto real, à vista do drama concreto dos vizinhos; que, perceptivelmente, deambula e namora em Lisboa, ou examina o campo com o olhar penetrante de proprietário rural. Assim tudo ganha volume: o sonho não diminui a vida: alimenta-se dela e a ela volta, a tonificar-se («Lavo, refresco, limpo os meus sentidos / E tangem-me excitados, sacudidos, / O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto»).


Esse poeta, quase sem precedentes nem continuadores entre nós, assimilando organicamente o que aprendeu de Baudelaire e Coppée, descobre a beleza enérgica, a «riqueza, química do sangue» dos operários «enfarruscados e secos» dos arsenais, ou de um «cardume negro» de varinas, ou do tinir no granito do aço dos calceteiros, e de toda a utensilagem dos ofícios manuais; vibra em simpatia com toda uma cidade viva, por vezes num «desejo absurdo de sofrer»: com o enjoo do gás extravasado, o chorar dos pianos das burguesinhas, o arrepio de um «Dezembro enérgico e sucinto», com o sol espelhado nas poças da chuva recente, as trindades, os passos da patrulha, o toque das grades nas cadeias, os clarões das lojas nas naves das ruas, uma hortaliceira regateando para o pão, uma engomadeira tuberculizando e sem ceia, os focos infecciosos da febre amarela.


Para exprimir este mundo, até então realmente desconhecido da poesia (...) Cesário renovou completamente a estilística tradicional da nossa poesia. Experimentou uma imaginária por vezes muito feliz. Introduziu no verso o processo queirosiano de suprir pelo adjectivo ou pelo advérbio uma relação lógica extensa, de imediatizar, pela surpresa da relação verbal, uma sugestão que morreria se se desdobrasse logicamente: «quando passas, aromática e normal»; «cheiro salutar e honesto ao pão no forno»; «pés decentes, verdadeiros»; «eu tudo encontro alegremente exacto»; «amareladamente, os cães parecem lobos»; etc. A par disto, Cesário consegue valorizar poeticamente o vocabulário e o tom de fala mais correntios na linguagem coloquial urbana, embalando o leitor num ritmo que ondula entre a atenção ao pormenor e um abrir de horizontes, entre a sátira ou a degradação, que nos oprimem, e um relance de beleza real, que nos expande.
As citações já feitas exemplificam bem o sopro renovador da sua sensibilidade, quaisquer que sejam os grumos de prosaísmo ainda por diluir nas poesias da sua maturidade, datável de cerca de 1877. Os «delírios mornos», as notações convencionalmente neuróticas ou depravadas, os excessos metafóricos de encarecimento sensual, certas margens de sátira demasiado crispada não condizem com o seu mais radicado sentir. Mas seria errado ver apenas Cesário Verde como ele frequentemente queria ver-se nos textos mais citados da sua obra, prematuramente interrompida pela morte aos 31 anos. O recorte voluntariamente britânico, «hábil, prático, viril», masculamente protector das feminilidades frágeis, com que se apresentava em pessoa, e muitas vezes em verso, o seu intermitente prosaísmo, que ama «a claridade, a robustez, a acção» não devem fazer esquecer outras facetas de uma afectividade por vezes finíssima. De outro modo, em sensibilidade sadia mas complexa, Cesário poderia confundir-se com a saúde mais banal do seu amigo, também poeta realista, Macedo Papança, mais tarde conde de Monsaraz, a quem de resto são endereçadas algumas cartas suas com deliciosos textos em prosa do mesmo estilo.


A coragem de assumir atitudes tidas como prosaicas não deixa de consentir muitos momentos frouxos, mas o que melhor distingue Cesário é o dom de chegar a percepções surpreendentes como estas: «Um parafuso cai nas lajes, às escuras», pormenor que só por si denuncia o fundo acústico rarefeito da cidade anoitecida e despovoada; «e os olhos de um caleche espantam-se sangrentos»; «e o sol estende, pelas frontarias / seus raios de laranja destilada» (…). Por outro lado, (...) ganha dimensões históricas: o poeta adivinha nas burguesinhas solteiras que tocam piano o mesmo histerismo das antigas freiras, também condenadas a uma estéril vida solteira por falta de noivos socialmente idóneos; de vez em quando dá a sentir, nas sombras de um templo ou dos arruamentos estreitos, o peso secular de tradições clericais redivivas; e os seus calceteiros talvez se inspirem nos de um célebre quadro de Courbet, mas denunciam, como em geral os seus operários urbanos e a própria paisagem ainda suburbana, as origens rurais de que a Capital estava ainda a surgir (…)”


António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 8ª edição, Porto Editora, 1975




Ensaio de Ballet, de Degas“Cesário é o poeta que, mal compreendido na sua época, irá exercer uma forte influência relativamente ao desenvolvimento da nossa poesia no sentido de uma modernidade que, mais tarde, a geração de Orpheu reconhecerá. (…) A crítica tem chamado a atenção para o facto de haver nessa poesia uma capacidade para visualizar e analisar através de uma especial percepção a realidade, afirmando-se, assim, na sequência dos movimentos naturalista e realista ficcionais, o que não impede de nela se desenhar também uma dimensão simbólica e transfiguradora. Cesário Verde teve a consciência da intenção que o animava ao projectar na sua poesia certos efeitos do real, intencionalmente perseguidos, como testemunha em vários passos: «Eu que medito um livro que exacerbe / quisera que o real e a análise mo dessem»; «eu tudo encontro alegremente exacto»; «o ritmo do vivo e do real». No entanto, este ritmo a que alude ganha um envolvimento complexo que deriva de um conjunto de desenvolvimentos verbais ou registos que lhe são próprios, os quais muito têm a ver com a organização sonora do verso, a sua disposição estrófica que lhe dá um contorno especialmente modelado (não se detendo em enjambements insólitos como este: «E saio. A noite pesa, esmaga. Nos / passeios de lajedo arrastam-se as impuras») e um sentido de coesão que deriva de sequências que representam uma articulação metonímica apoiada por um desenvolvimento descritivo (ou, até, aditivo como ocorre, explicitamente, no início desta passagem: «E mais: as costureiras, as floristas / descem dos magasins»).


A contiguidade textual desempenha um papel importante na poesia de Cesário Verde, como se pode ver no recurso ao assíndeto, o qual ganha uma dimensão especial se estivermos atentos à maneira como se sujeita ao ritmo escandido do verso, ganhando as notações justapostas uma movimentação entonacional harmoniosa. É o que se pode apreender neste verso: "as virações, o rio, os astros, a paisagem", ou no modo como se faz da melhor maneira, sob o ponto de vista rítmico, a enumeração dos cinco sentidos: «o tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!». (...) Cesário Verde recorre apropriadamente à metaforização ou, até, a formas de comparação que não raro se tornam transfiguradoras pelo modo como aí convergem imagens compósitas ou palavras com registos semânticos diferentes. A hipálage - processo de adjectivar que é exemplarmente usado por Eça de Queirós - será um dos momentos retoricamente mais marcados de tal convergência, como se pode ver em casos deste tipo: «um cheiro salutar e honesto a pão no forno».


(...) Outra aspecto importante na poesia de Cesário Verde diz respeito ao papel que nela desempenha o eu. Se a referência ao eu é recorrente, nem por isso a confessionalidade é uma das características a ter em conta. Trata-se de um eu-personagem ou de um eu-reminiscente que não conduz em directo a uma identificaçâo autobiográfica, na medida em que surge como instância do próprio texto. (...) O que importa salientar é que tudo isto implica uma autocorrecçâo emocional da própria expressão poética, a qual poderá ser antecipada por uma figuração irónica (...). No entanto, a ironia ou a capacidade transfiguradora que nela existe pode ganhar em Cesário Verde efeitos expressivamente mais válidos e que não estão de todo ausentes quando se consideram certas dominantes sémicas que se articulam entre si, criando um conjunto de descrições contrastantes sobretudo pelos valores positivo ou negativo de que parecem estar revestidas (e é, por vezes, ironicamente que esses valores se podem relativizar), os quais dizem respeito ao que vários críticos têm designado como sendo o contraste com que na obra de Cesário Verde se descreve o campo e a cidade, a «dama fatal» e a mulher doce, amorável e fraterna - isto é, a «débil» vista idealmente - ou o próprio sentido de vida e o sentido da morte.


O contraste ou binómio campo-cidade foi especialmente posto em destaque por David Mourão-Ferreira e Joel Serrão. (...) Vimos atrás que o uso recorrente da primeira pessoa - consequentemente desprovido de uma «emoção psicológica e íntima» - faz com que o eu seja apenas o narrador do poema, o que lhe empresta, por vezes, um tom coloquial que (...) ganha inflexões que moldam de um modo particularmente significativo a sua poesia: o expletivo, o reticente, o parentético, o uso de frases nominais, a linguagem familiar (através de palavras como «biscate», «ateimar», etc.) ou de extracção mais snob (utilização repetida de termos franceses ou ingleses).


O que há de inovador em muitos destes aspectos contribuiu para que a sua poesia tivesse uma má recepção inicial (...). Outro ponto de vista crítico que se generalizou decorre do facto de se considerar o poeta como um representante da «ideologia da pequena burguesia mercantil e trabalhadora», ou como um autor de poemas que são «uma crítica objectiva e um julgamento subjectivo da sociedade contemporânea», isto é, das «circunstâncias sociais injustas». Cabral Martins, pegando na ideia de justiça - e reforçando-a com esta afirmação de Cesário Verde numa carta para Silva Pinto: «o que eu desejo é aliar ao lirismo a ideia de justiça» -, prefere entendê-la de acordo com um sentido que se aproxima mais do de justeza, a qual estaria dependente sobretudo de uma «poética da exactidão». Outra questão, que, como a anterior, é de certo modo aleatória, consiste no paralelismo que se estabeleceria entre a poesia de Cesário Verde - cujo carácter visualista ele próprio reconhece: «pinto quadros por letras, por sinais» - e as artes plásticas, nomeadamente a possível referência Les Casseurs de Pierre, de Courbetao quadro de Courbet Les casseurs de pierre, que duvidosamente se poderia relacionar com «Cristalizações», às tendências impressionistas (ou, se se fizer uma aproximação mais adequada, a pintura do chamado Grupo do Leão.”


in Dicionário de Literatura Portuguesa, org. e dir. de Álvaro Manuel Machado, Lisboa, Ed. Presença, 1996

1 comentário:

Ibraim_b disse...

Gostei imenso do poema "O Sentimento de um Ocidental", e na visita de estudo tivemos o privilégio de passar por alguns dos locais referidos nesse poema.