domingo, 6 de abril de 2008

O Realismo na literatura portuguesa

Não é empresa fácil historiar - e muito menos resumir - o complexo movimento chamado «Realismo» na literatura portuguesa do séc. XIX. Por trás dessa palavra escondem-se e convivem fenómenos e atitudes estéticas de natureza muito diversa. Abre esse período a ruidosa Questão Coimbrã, polémica literária que significou - na frase de Teófilo Braga - «a dissolução do Romantismo». Nela se manifestou pela primeira vez o protesto da geração nascida por meados do século contra o exagero balofo e caduco do gosto romântico, convertido em gesto vazio de monótona artificiosidade. Dela surgiu o Realismo.


A França - e através desta a Alemanha e a Inglaterra - foi a principal inspiradora dos dirigentes da rebelião coimbrã.


Entre 1860 e 1865 saturaram-se de cultura europeia, aspirando os ares que vinham de fora, absorvendo de golpe o humanitarismo social francês de 48. Leram e decoraram Proudhon e Quinet, o satanismo baudelairiano, a erudição histórica de Leconte de Lisle, o determinismo de Taine, as eloquências liberais humanitárias de Hugo, o diletantismo critico de Renan, o revolucionarismo apostólico de Michelet, - e ainda Hegel, e Heine, e Darwin, e Flaubert.


Espíritos muitos díspares, tinham, porém, em comum o prurido de irreverência e de liberdade, o sentimento de revolta contra a estagnação do Ultra-Romantismo constitucionalista e o intuito de renovação do clima das letras e da vida portuguesa. Fora desta comunidade de formação e de atitude geracional, cada um deles seguiu uma trajectória criadora e vital acentuadamente diferenciada.


Contudo, Antero de Quental, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro - e Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, que depois se lhes uniram - surgem nos manuais de literatura agrupados sob a epígrafe de «Realismo», naquela que ficou conhecida como a Geração de 70.


De facto, a palavra «realismo» já se envolvera na contenda literária de 1865-66 e fora utilizada como sinónimo de «arte nova» ou «estilo coimbrão».


Um dos espíritos críticos mais avisados da época, Luciano Cordeiro, publicou um artigo n'A Revolução de Setembro (a 7 de Novembro de 1867), intitulado «A arte realista», no qual, adoptando uma posição ecléctica, criticava fortemente quer os moços que injuriavam o escritor ultra-romântico António Feliciano de Castilho em nome da «verdade» artística do «Realismo», quer os ultra-românticos que tremiam de furor e desespero à simples a menção da odiada palavra.


Cordeiro acusava tanto uns como outros a de aceitar como «Realismo» a banal e superficial «tradução da objectividade material das coisas». E anunciava, com a dissolução do Romantismo, periclitante e decrépito, o advento da «escola critica», que, falando à consciência e à razão e exigindo maior cultura intelectual e mais profundo conhecimento dos problemas filosóficos e sociais da época, repudiaria tanto o realismo materialista da arte pela arte como a «inspiração» romântica - cuja manifestação nesse momento era o lirismo sentimental e elegíaco e o formalismo estreitamente provinciano da literatura oficial, na poesia e no romance.


O segundo episódio do processo de aparecimento do Realismo verificou-se em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino. Nesta nova manifestação pública da geração de Coimbra, já em plena maturidade, os contornos do Realismo desenharam-se mais nitidamente, embora a sua formulação teórica estivesse longe de responder aos postulados doutrinais hoje aceites como basilares do Realismo de escola francês.

Eça de Queirós, que na Questão de 1865 fora simples espectador, e que até 1871 apenas se manifestara literariamente com uma nebulosa mistura de retalhos de romantismos de além-fronteiras e de parnasianismos de cunho satânico, foi agora o expositor doutrinário da «nova literatura».


A sua conferência versou sobre «O Realismo como nova expressão da Arte» - título em que aparecia a palavra pomo de discórdia. Sob a influência de Antero de Quental, Eça aproximou curiosamente as teorias tainianas do determinismo do meio com os postulados estético-sociais de Proudhon, vergastando o estado decadente das letras nacionais e propugnando uma arte que respondesse às aspirações do espírito dos tempos, que agisse como regeneradora da consciência social e que, desterrando o falso, pintasse a realidade. Essa arte, uma arte revolucionária, era o Realismo; relegando a arte pela arte, a retórica vácua e a invenção romanesca, procedia pela observação e pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos caracteres; enfim, visava a dilucidação dos problemas morais e o aperfeiçoamento da Humanidade.


Com este cientificismo Eça já situava o Realismo, consciente ou inconscientemente, adentro do Naturalismo de Zola.

A conferência de Eça provocou nova batalha. Nas páginas d' A Revolução de Setembro, Pinheiro Chagas - que fora motivo e combatente no recontro de 1865 - atacou Eça e o detestado Realismo. Outras penas, porém, saíram em defesa do conferencista e das suas ideias. E novamente Luciano Cordeiro entrou na lide, comentando a dissertação e salientando que já ele, em 1868, tinha defendido ideias parecidas, ao falar do seu conceito tainiano da arte.

Dois anos mais tarde Eça publicou o conto «Singularidades duma Rapariga Loira» (recolhido em Contos, 1902) - que, na opinião de Fialho de Almeida, é «a primeira narrativa realista escrita em português».


A batalha efectiva da implantação do Realismo no romance começou com a publicação d'O Crime do Padre Amaro, seguida dois anos mais tarde por O Primo Basílio, obras caracterizadas ambas por métodos de narração e de descrição baseados numa minuciosa observação e análise psicofisiológicas, com a anatomia moral das personagens referida a factores deterministas de meio, educação e hereditariedade, à maneira de Zola - e com evidente intuito de crítica de costumes e reforma social.

O primeiro destes romances foi acolhido pelos críticos com um silêncio significativo e escandalizado. O segundo provocou o escândalo aberto. A colisão polémica entre os inimigos dos processos realistas de efabulação e os sequazes da nova tendência alcançou a sua maior virulência em 1880-81. Naquela data novamente Pinheiro Chagas arremete, num jornal brasileiro, contra Eça, tachando-o de antipatriota, pelo modo como apresenta a sociedade portuguesa.

Camilo Castelo Branco, o mestre do romance romântico, então no cume da fama, que em 1879 dera a lume o Eusébio Macário, paródia da técnica narrativa dos realistas, publicava em 1880 A Corja, onde o intuito caricatura era ainda mais evidente. O resultado foi uma violenta polémica, esmaltada de injúrias, na qual tomaram parte apaixonadas penas dum e doutro bando. Curiosamente, Camilo, «realista inconsciente», acabou por aceitar, e empregar de boa fé, muitos dos processos do realismo.

O atrevimento de certos passos dos romances de Eça, principalmente d'O Primo Basílio, escandalizava as pessoas de moral timorata, e chegaram a aparecer folhetos acusando os realistas de contribuírem para a «desmoralização das famílias».

Na década decorrida desde as Conferências Democráticas do Casino, o Realismo lograra um núcleo de adeptos que se empenharam em explicar e defender o seu credo estético, contra a acusação, que os ultra-românticos puseram a circular, de «grosseria» e imoralidade.

Por 1890 o Realismo-Naturalismo tinha perdido a sua vigência. Em 1893, o próprio Eça declara que «o homem experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que jamais existiu, a não ser em teoria) Positivismo e Idealismo», in Notas Contemporâneas).

Nos outros géneros o Realismo produziu frutos muito desiguais. Não houve uma critica normativa, sistemática. O teatro não foi atingido pelas novas ideias. Não houve drama que possa ser chamado realista; o palco ficou apegado anacronicamente ao gosto romântico. A poesia foi multiforme e teve correntes que se entrecruzaram muito complexamente. Actuaram, com efeito, no período realista tendências assaz divergentes, sujeitas a influências muito diversas. Aliás, a própria natureza do género, de carácter subjectivo, íntimo e pessoal, conspirava contra o predomínio duma determinada doutrina.

A par do revolucionarismo e do angustiado misticismo metafísico de Antero de Quental, encontramos a enfática poesia da Humanidade de Teófilo Braga, o prosaísmo satírico de João Penha, o lirismo social e democrático de Guilherme de Azevedo e de Gomes Leal, o «quotidianismo» citadino e burguês de Cesário Verde, o parnasianismo preciosista de Gonçalves Crespo e o verbo satânico, caudaloso e tonitruante de Guerra Junqueiro, intentando casar Ciência e Poesia.

Resumindo, poderia dizer-se que não foi o Realismo português, visto no seu conjunto, tanto uma escola literária bem definida como um sentimento novo, uma nova atitude espiritual em que couberam direcções e dimensões muito divergentes, que se alçou contra um «idealismo» sem ideais. A sua consequência mais vital e duradoura foi romper a incuriosidade do patriotismo provinciano dos ultra-românticos, abrindo as comportas do espírito nacional a todas as influências de fora, alargando a escolha de motivos literários e renovando as letras duma maneira ampla.

Adaptado do artigo «Realismo» in Jacinto do Prado COELHO. Dicionário de Literatura. Porto: Figueirinhas, 1978

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